Pontos de Vista na Literatura

Por Sandro Massarani É muito complicado determinarmos qual é a principal razão do interesse das pessoas por histórias. Existem inúmeras opiniões distintas, cada uma com sua parcela de razão. Porém, não podemos negar que há o encanto por entrarmos em um mundo que não é o nosso, em uma mente que não é a nossa, vivermos a vida de uma outra pessoa, torcer por ela, chorar com ela, extravazarmos nossas fantasias. Um escritor precisa ficar atento a este fato, e no processo de construção de seu texto ele precisa definir a seguinte questão: Através da visão de qual ou quais personagens contarei esta história? A resposta a essa pergunta nos levará à definição do Ponto-de-Vista (POV) da obra, ou seja, quem contará os acontecimentos e como eles serão narrados. Vamos agora analisar os principais POVs existentes na literatura. 1. Primeira Pessoa A narração em primeira pessoa se baseia no "eu". O narrador se mescla com o próprio personagem e obtemos uma história altamente pessoal. Exemplos: Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Praça da Constituição tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, algumas vezes, a minha vã devoção a exasperara; morta, podia consagrarme à sua memória, sem esperança, mas também sem humilhação. Lembrei-me de que a 30 de Abril era o seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo direito, era um acto cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias dos seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, a cores; Beatriz, com máscara, no Carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia do seu casamento com Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês oferecido por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e a três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não seria obrigado, como outras vezes, a justificar a minha presença com módicas ofertas de livros - livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que se mantinham intactos. Jorge Luis Borges - O Aleph (1949) Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: - Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! Lima Barreto - O Homem que Sabia Javanês (1911) O POV em primeira pessoa tem a vantagem de uma proximidade máxima com o personagem que narra a obra, e acabamos compartilhando totalmente todas suas sensações, emoções e opiniões. Os pensamentos desse narrador/personagem são facilmente transmitidos, já que ele "conversa" diretamente com o leitor. O problema de se utilizar o POV de primeira pessoa é que geralmente ficamos preso somente a uma visão, e geralmente não podemos narrar o que esse personagem não vê. Nós nunca devemos "enganar" o leitor quando utilizamos a primeira pessoa. Se o narrador sabe de algo, os leitores também devem saber, não havendo espaços para surpresas de última hora. Por isso, não é recomendado que o narrador de histórias de detetive e mistério seja o personagem principal, senão o suspense e o mistério perderia muito de sua força. As histórias de Sherlock Holmes precisam ser narradas pelo Dr.Watson, que ao se surpreender com as façanhas de seu amigo acaba também transferindo sua emoção ao leitor. Um erro comum no POV em primeira pessoa é o autor escrever suas próprias opiniões e as transferir totalmente para o personagem. O escritor tem que ter cuidado. Mesmo estando em primeira pessoa, o personagem narrador não é o autor, e sim uma pessoa distinta criada para os propósitos da história, que deve ter sua própria individualidade para ser crível. É lógico que se o autor estiver escrevendo um texto autobiográfico esse problema não se aplica. 2. Terceira Pessoa A narração em terceira pessoa se baseia no "ele", "ela" ou "isto", e a maioria das obras comerciais são escritas nesse POV. Ao mesmo tempo que podemos saber o que se passa dentro do personagem ("Ele pensou"), também podemos analisá-lo por fora, pelos olhos do autor ("Ele fez"). Exemplos: De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos. Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso com uma jóia. Ela.Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria de pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. De devaneio agudo com um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de "ninguém olhar para ela". Quando de madrugada se levantava - passado o instante de vastidão em que se desenrolava toda - vestia-se correndo, mentia para si mesmo que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais adivinhara quão poucos ela tomava. Sob a luz acesa da sala de jantar, engolia o café que a empregada, se começando no escuro da cozinha, requentara. Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia. Com a boca fresca de jejum, os livros embaixo do braço, abria enfim a porta, transpunha a mornidão insossa da casa, galgando-se para a gélida fruição da manhã. Então já não se apressava mais. Clarice Lispector - Preciosidade (1960) Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:- Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. José Cândido de Carvalho Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon (1971) A vantagem da terceira pessoa é que o autor tem maior flexibilidade para contar a história, não precisando ficar preso a somente uma visão, como na primeira pessoa. Porém, devemos ter certos cuidados. Qual é a proximidade que teremos com cada personagem? Saberemos com detalhes o que se passa dentro da cabeça de cada um? O escritor precisa ter isso em mente na construção da obra. Toda vez que pulamos de uma mente para a outra, o leitor acaba também tendo que alterar sua visão, o que pode causar um certo desconforto e até a perda da concentração. Além disso, saber o que se passa na cabeça de todos os personagens pode tornar a obra muito fragmentada e inconsistente. Muitos autores se utilizam do que chamamos de terceira pessoa limitada, ou seja, mantém durante a obra uma relação de proximidade com apenas um personagem. Apesar da obra ser narrada em terceira pessoa, nós só sabemos os sentimentos e as opiniões de um só caracter, o que torna o texto mais coeso e próximo a uma primeira pessoa, uma narração quase pessoal. Porém, o mais comum em obras comerciais é o autor ficar "passeando" pelas mentes dos personagens e isso deve ser feito com muita suavidade para não causar vertigem no leitor. O autor deve conscientemente definir qual o tipo de aproximação a narração terá com determinado personagem. O fragmento abaixo mostra um certo distanciamento do narrador: Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas mãos, costurava o que parecia ser uma luva. Ele estava visivelmente indeciso e não sabia se aquele era o momento certo de se declarar. Vamos ver como esse fragmento se transforma quando o narrador estabelece uma relação mais íntima com o personagem Artur, típico da terceira pessoa limitada: Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas mãos, costurava o que parecia ser uma luva. E agora? O que fazer? O nervosismo só aumentava, o suor escorria. Ela era tão linda, mas o medo de uma rejeição se tornava cada vez maior. O POV de terceira pessoa permite inúmeras possibilidades narrativas, e deve ser utilizado quando temos vários personagens importantes que precisam mostrar suas vozes e pensamentos, ou quando a narração em primeira pessoa é vista como uma opção claustrofóbica para a história, desejando o autor mais flexibilidade. 3. Omniscente Ominiscente é quando o narrador é uma espécie de "Deus": sabe de tudo e de todos, inclusive fazendo comentários diretos para o leitor. É uma radicalização da terceira pessoa, sendo bastante artificial e invasivo, pois penetra em um mundo que deveria ser privacidade do leitor. Muito comum no século XIX, foi perdendo sua popularidade ao longo dos anos mas ainda pode ser encontrado em algumas obras atuais. A principal diferença entre terceira pessoa e omniscente, é que em terceira pessoa o escritor permanece de certa forma invisível, deixando espaço somente para os personagens. Já no POV omniscente, o escritor participa ativamente da narrativa. Exemplo: Que ele era um dos primeiros gamenhos de seu bairro e outros bairros adjacentes, é coisa que não sofre nem sofreu nunca a menor contestação. Podia ter competidores; teve-os; não lhe faltaram invejosos; mas a verdade, como o sol, acabou dissipando as nuvens e mostrando a face rutilante e divina, ou divinamente rutilante, como lhes parecer mais correntio e penteado. O estilo há de ir à feição do conto, que é singelo, nu, vulgar, não desses contos crespos e arrevesados com que autores de má sorte tomam o tempo e moem a paciência à gente cristã. Pois não! Eu não sei dizer coisas fabulosas e impossíveis, mas as que me passam pelos olhos, as que os leitores podem ver e terão visto. Olho, ouço e escrevo. Machado de Assis - Dívida Extinta (1878) 4. Epistolário Epistolário é quando a narração se dá por meio de documentos escritos ou gravados, como cartas, notícias de jornais, e-mails, entrevistas e diários. É muito raro termos uma obra inteira sendo narrada através de epistolários, sendo o mais comum termos apenas alguns fragmentos do texto utilizando esse POV. A obra mais famosa escrita totalmente em espistolários é provavelmente Drácula de Bram Stoker: Diário de Jonathan Harker (Taquigrafado) 3 de maio. Bistritz - Parti de Munique às 8,35 da noite e cheguei a Viena na manhã seguinte, muito cedo; devia ter chegado às 6,46, mas o trem estava atrasado uma hora. Tive ótima impressão de Budapeste, pelo que pude ver do trem, e pelo pequeno passeio que dei pela cidade. A impressão que tive foi a de estar saindo do Ocidente e entrando no Oriente. O tempo estava muito bom quando partimos e, ao anoitecer, chegamos a Klausenburg, onde passei a noite no Hotel Royale. Ali jantei, ou melhor, ceei, uma excelente galinha temperada com uma espécie de pimenta vermelha. (Nota: arranjar receita para Mina.) Meu alemão, embora eu o fale mal, me foi muito útil; para falar a verdade, não sei como me arranjaria sem ele. Antes de partir de Londres, como dispunha de algum tempo, fiz uma visita ao Museu Britânico, onde consultei livros e mapas referentes à Transilvânia. Descobri que a região por ele mencionada fica perto das fronteiras de três Estados, Transilvânia, Moldávia e Bucovina, nos Montes Cárpatos, um dos lugares mais selvagens e menos conhecidos da Europa. Drácula - Bram Stoker (1897) Considerações finais Evite mudar constantemente os POVs de uma história. O mais comum é combinarmos primeira ou terceira pessoa com epistolário. Não é muito interessante combinarmos primeira com terceira pessoa, pois causa confusão no leitor. Porém, a escrita, como toda arte, não precisa seguir fórmulas preparadas, tendo espaço para experimentos, desde que estes sejam feitos com atenção e por alguém de habilidade. A escolha do narrador e do POV é de fundamental importância. Nem sempre o personagem principal precisa ser o narrador. O escritor deve buscar o ângulo de visão mais interessante para contar o seu texto e ter sempre em consideração que o narrador deve presenciar as cenas mais importantes da obra. Bons estudos!
tópicos sobre narrativa, roteiros e mundos virtuais
Além do Cotidiano
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Por Sandro Massarani É muito complicado determinarmos qual é a principal razão do interesse das pessoas por histórias. Existem inúmeras opiniões distintas, cada uma com sua parcela de razão. Porém, não podemos negar que há o encanto por entrarmos em um mundo que não é o nosso, em uma mente que não é a nossa, vivermos a vida de uma outra pessoa, torcer por ela, chorar com ela, extravazarmos nossas fantasias. Um escritor precisa ficar atento a este fato, e no processo de construção de seu texto ele precisa definir a seguinte questão: Através da visão de qual ou quais personagens contarei esta história? A resposta a essa pergunta nos levará à definição do Ponto-de-Vista (POV) da obra, ou seja, quem contará os acontecimentos e como eles serão narrados. Vamos agora analisar os principais POVs existentes na literatura. 1. Primeira Pessoa A narração em primeira pessoa se baseia no "eu". O narrador se mescla com o próprio personagem e obtemos uma história altamente pessoal. Exemplos: Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Praça da Constituição tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, algumas vezes, a minha vã devoção a exasperara; morta, podia consagrarme à sua memória, sem esperança, mas também sem humilhação. Lembrei-me de que a 30 de Abril era o seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo direito, era um acto cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias dos seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, a cores; Beatriz, com máscara, no Carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia do seu casamento com Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês oferecido por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e a três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não seria obrigado, como outras vezes, a justificar a minha presença com módicas ofertas de livros - livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que se mantinham intactos. Jorge Luis Borges - O Aleph (1949) Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: - Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! Lima Barreto - O Homem que Sabia Javanês (1911) O POV em primeira pessoa tem a vantagem de uma proximidade máxima com o personagem que narra a obra, e acabamos compartilhando totalmente todas suas sensações, emoções e opiniões. Os pensamentos desse narrador/personagem são facilmente transmitidos, já que ele "conversa" diretamente com o leitor. O problema de se utilizar o POV de primeira pessoa é que geralmente ficamos preso somente a uma visão, e geralmente não podemos narrar o que esse personagem não vê. Nós nunca devemos "enganar" o leitor quando utilizamos a primeira pessoa. Se o narrador sabe de algo, os leitores também devem saber, não havendo espaços para surpresas de última hora. Por isso, não é recomendado que o narrador de histórias de detetive e mistério seja o personagem principal, senão o suspense e o mistério perderia muito de sua força. As histórias de Sherlock Holmes precisam ser narradas pelo Dr.Watson, que ao se surpreender com as façanhas de seu amigo acaba também transferindo sua emoção ao leitor. Um erro comum no POV em primeira pessoa é o autor escrever suas próprias opiniões e as transferir totalmente para o personagem. O escritor tem que ter cuidado. Mesmo estando em primeira pessoa, o personagem narrador não é o autor, e sim uma pessoa distinta criada para os propósitos da história, que deve ter sua própria individualidade para ser crível. É lógico que se o autor estiver escrevendo um texto autobiográfico esse problema não se aplica. 2. Terceira Pessoa A narração em terceira pessoa se baseia no "ele", "ela" ou "isto", e a maioria das obras comerciais são escritas nesse POV. Ao mesmo tempo que podemos saber o que se passa dentro do personagem ("Ele pensou"), também podemos analisá-lo por fora, pelos olhos do autor ("Ele fez"). Exemplos: De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos. Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso com uma jóia. Ela.Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria de pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. De devaneio agudo com um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de "ninguém olhar para ela". Quando de madrugada se levantava - passado o instante de vastidão em que se desenrolava toda - vestia-se correndo, mentia para si mesmo que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais adivinhara quão poucos ela tomava. Sob a luz acesa da sala de jantar, engolia o café que a empregada, se começando no escuro da cozinha, requentara. Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia. Com a boca fresca de jejum, os livros embaixo do braço, abria enfim a porta, transpunha a mornidão insossa da casa, galgando-se para a gélida fruição da manhã. Então já não se apressava mais. Clarice Lispector - Preciosidade (1960) Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:- Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. José Cândido de Carvalho Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon (1971) A vantagem da terceira pessoa é que o autor tem maior flexibilidade para contar a história, não precisando ficar preso a somente uma visão, como na primeira pessoa. Porém, devemos ter certos cuidados. Qual é a proximidade que teremos com cada personagem? Saberemos com detalhes o que se passa dentro da cabeça de cada um? O escritor precisa ter isso em mente na construção da obra. Toda vez que pulamos de uma mente para a outra, o leitor acaba também tendo que alterar sua visão, o que pode causar um certo desconforto e até a perda da concentração. Além disso, saber o que se passa na cabeça de todos os personagens pode tornar a obra muito fragmentada e inconsistente. Muitos autores se utilizam do que chamamos de terceira pessoa limitada, ou seja, mantém durante a obra uma relação de proximidade com apenas um personagem. Apesar da obra ser narrada em terceira pessoa, nós só sabemos os sentimentos e as opiniões de um só caracter, o que torna o texto mais coeso e próximo a uma primeira pessoa, uma narração quase pessoal. Porém, o mais comum em obras comerciais é o autor ficar "passeando" pelas mentes dos personagens e isso deve ser feito com muita suavidade para não causar vertigem no leitor. O autor deve conscientemente definir qual o tipo de aproximação a narração terá com determinado personagem. O fragmento abaixo mostra um certo distanciamento do narrador: Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas mãos, costurava o que parecia ser uma luva. Ele estava visivelmente indeciso e não sabia se aquele era o momento certo de se declarar. Vamos ver como esse fragmento se transforma quando o narrador estabelece uma relação mais íntima com o personagem Artur, típico da terceira pessoa limitada: Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas mãos, costurava o que parecia ser uma luva. E agora? O que fazer? O nervosismo só aumentava, o suor escorria. Ela era tão linda, mas o medo de uma rejeição se tornava cada vez maior. O POV de terceira pessoa permite inúmeras possibilidades narrativas, e deve ser utilizado quando temos vários personagens importantes que precisam mostrar suas vozes e pensamentos, ou quando a narração em primeira pessoa é vista como uma opção claustrofóbica para a história, desejando o autor mais flexibilidade. 3. Omniscente Ominiscente é quando o narrador é uma espécie de "Deus": sabe de tudo e de todos, inclusive fazendo comentários diretos para o leitor. É uma radicalização da terceira pessoa, sendo bastante artificial e invasivo, pois penetra em um mundo que deveria ser privacidade do leitor. Muito comum no século XIX, foi perdendo sua popularidade ao longo dos anos mas ainda pode ser encontrado em algumas obras atuais. A principal diferença entre terceira pessoa e omniscente, é que em terceira pessoa o escritor permanece de certa forma invisível, deixando espaço somente para os personagens. Já no POV omniscente, o escritor participa ativamente da narrativa. Exemplo: Que ele era um dos primeiros gamenhos de seu bairro e outros bairros adjacentes, é coisa que não sofre nem sofreu nunca a menor contestação. Podia ter competidores; teve-os; não lhe faltaram invejosos; mas a verdade, como o sol, acabou dissipando as nuvens e mostrando a face rutilante e divina, ou divinamente rutilante, como lhes parecer mais correntio e penteado. O estilo há de ir à feição do conto, que é singelo, nu, vulgar, não desses contos crespos e arrevesados com que autores de má sorte tomam o tempo e moem a paciência à gente cristã. Pois não! Eu não sei dizer coisas fabulosas e impossíveis, mas as que me passam pelos olhos, as que os leitores podem ver e terão visto. Olho, ouço e escrevo. Machado de Assis - Dívida Extinta (1878) 4. Epistolário Epistolário é quando a narração se dá por meio de documentos escritos ou gravados, como cartas, notícias de jornais, e-mails, entrevistas e diários. É muito raro termos uma obra inteira sendo narrada através de epistolários, sendo o mais comum termos apenas alguns fragmentos do texto utilizando esse POV. A obra mais famosa escrita totalmente em espistolários é provavelmente Drácula de Bram Stoker: Diário de Jonathan Harker (Taquigrafado) 3 de maio. Bistritz - Parti de Munique às 8,35 da noite e cheguei a Viena na manhã seguinte, muito cedo; devia ter chegado às 6,46, mas o trem estava atrasado uma hora. Tive ótima impressão de Budapeste, pelo que pude ver do trem, e pelo pequeno passeio que dei pela cidade. A impressão que tive foi a de estar saindo do Ocidente e entrando no Oriente. O tempo estava muito bom quando partimos e, ao anoitecer, chegamos a Klausenburg, onde passei a noite no Hotel Royale. Ali jantei, ou melhor, ceei, uma excelente galinha temperada com uma espécie de pimenta vermelha. (Nota: arranjar receita para Mina.) Meu alemão, embora eu o fale mal, me foi muito útil; para falar a verdade, não sei como me arranjaria sem ele. Antes de partir de Londres, como dispunha de algum tempo, fiz uma visita ao Museu Britânico, onde consultei livros e mapas referentes à Transilvânia. Descobri que a região por ele mencionada fica perto das fronteiras de três Estados, Transilvânia, Moldávia e Bucovina, nos Montes Cárpatos, um dos lugares mais selvagens e menos conhecidos da Europa. Drácula - Bram Stoker (1897) Considerações finais Evite mudar constantemente os POVs de uma história. O mais comum é combinarmos primeira ou terceira pessoa com epistolário. Não é muito interessante combinarmos primeira com terceira pessoa, pois causa confusão no leitor. Porém, a escrita, como toda arte, não precisa seguir fórmulas preparadas, tendo espaço para experimentos, desde que estes sejam feitos com atenção e por alguém de habilidade. A escolha do narrador e do POV é de fundamental importância. Nem sempre o personagem principal precisa ser o narrador. O escritor deve buscar o ângulo de visão mais interessante para contar o seu texto e ter sempre em consideração que o narrador deve presenciar as cenas mais importantes da obra. Bons estudos!